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Cahiers antispécistes n°22 -

Percurso Pessoal

Tradução: Juliana Marques; revisão: Genevive de Oliveira Moreira

Freqüentemente os militantes vegetarianos se perguntam por que e como alguém que come carne questionaria seu hábito. Esta questão me parece capital na medida em que ela é o centro de nossa estratégia de propaganda (alguns preferem dizer, comunicativa).

O texto abaixo propõe ser minha contribuição a este debate, já que retraço meu percurso pessoal, o de um ex-carnívoro que se tornou vegetariano e depois vegano.

Por si própria, uma história individual não tem valor geral, mas creio que a confrontação de nossas vivências é essencial se queremos tirar lições para o futuro: quais são os argumentos, as experiências e as imagens que nos fazem refletir sobre o tempo em que fomos carnívoros?

Baptiste

Desde a infância vivi no campo, quer dizer, em relação cotidiana com os animais ditos de criação ou de abate, mas que vivem em condição de vida menos insuportáveis do que os inseridos em uma criação intensiva (ao menos até antes de os levarmos ao abatedouro) e tivemos em casa, além de gatos e cães, gansos, galinhas, galos e patos. Animais que meus pais criaram nesta época como animais de companhia: eles viviam em semi liberdade, mas nunca foram engordados ou mortos.

O lugar que os não humanos ocupavam tinha algo de terrivelmente paradoxal, pois os animais eram considerados como seres capazes de real afeição, como objetos de brincadeiras divertidas e também como alimento. A imagem mais caricatural deste paradoxo me parece ser o momento em que meus vizinhos me mostraram, com uma aparente afeição, um de seus galos... Que eles criaram para combate.

 

Nesta idade experimentei ao mesmo tempo a compaixão pelos animais que me eram mais próximos e uma total indiferença por aqueles que não eram: eu acariciava a cabeça de uma vaca que vivia próximo a minha casa, mas não me impedia de me empanturrar de carne no almoço. Um pouco mais tarde, quando aprendi concretamente o que eram os abatedouros, não quis que aquelas vacas fossem para lá, mas não considerei o princípio de matá-las.

Então, quando tinha seis ou sete anos, produziu-se um fato revelador para mim: espionei um fazendeiro no momento em que ele cortava um porco (certamente abatido artesanalmente para o seu próprio consumo). Ainda guardo hoje uma visão do horror.

Falei muito ao meu redor sobre esse fato e foi assim que fiquei sabendo que havia pessoas que viviam sem comer os animais...

Cheguei uma noite em casa e, na hora da refeição, decretei em alto e bom tom, apesar de minha tenra idade: «Não quero mais comer carne». A reação de meus pais se mostrou então digna do que possa ser uma boa educação baseada em preconceitos contra as crianças, ou seja, a educação que considera as crianças como uma meia-pessoa: «Termine de comer! Veremos isso quando você souber cozinhar sozinho!», etc.

 

Continuei então a comer carne, mas considerando que o fiz contra minha vontade. Posição covarde e desconfortável que não pude manter por muito tempo: rapidamente continuei fingindo não enxergar muito longe, mas sentia muita repugnância, principalmente quando me deparava com um prato que tivesse a estrutura de um animal morto (peixe, crustáceo, coelho...), mas eu tentava não ver, atrás do pedaço de carne, o animal que tinha existido.

No fim de meus estudos no colégio e início do ginásio eu fui tendo meus primeiros contatos com o militarismo de esquerda, período no qual eu provavelmente tenha dito as maiores besteiras sobre os animais.

De fato, era tradição no meio ter idéias sobre tudo e rejeitar sem concessões todos os que não pensassem exatamente como nós (tudo que fosse menos radical do que eu era reformismo burguês, tudo que fosse mais radical do que eu era sectarismo, um tipo de visão, digamos, bem maniqueísta das coisas...) Ora, apesar de minhas tentativas antigas eu não havia saído do carnivorismo, então isso queria dizer que não era para eu sair:

Devemos cuidar primeiro dos humanos, depois veremos...Os defensores dos animais não têm nenhuma consciência dos reais antagonismos de classes...Os animais se comem entre si...Façamos assim também...Somos feitos deste modo...

A enxurrada de absurdos que eu pude dizer na época foi impressionante.

No liceu, eu mesmo arranquei os cartazes de uma campanha anti-vivissecção e sabotei a palestra que a acompanhava. O cúmulo!

Devo ainda dizer que quem preparou a dita palestra era, ele mesmo, carnívoro, e que o título choque do cartaz – Não dê mais à pesquisa médica, ela tortura os animais – atacava um valor que eu defendia incondicionalmente.

Ainda hoje acredito que abordar os especistas pedindo para não apoiarem a pesquisa médica é algo inútil e, agir assim, acaba marginalizando o movimento: o boicote à pesquisa é um problema muito delicado que devemos abordar depois da alimentação, do couro e dos cosméticos.

 

Quero dizer que, por trás desta máscara de indiferença pelo animal, eu continuava interiormente a me culpar e acabei notando que minhas justificativas pelo massacre dos animais não era nada além de construções intelectuais sem fundamento nas quais nem eu acreditava (notem que, seja para defendê-la ou criticá-la, a causa dos animais foi seguidamente o centro de minhas propostas, mesmo não existindo nenhum vegetariano entre os meus próximos).

Tomei então a decisão de me tornar vegetariano em estranhas circunstâncias: terminamos uma noitada de raclette numa reunião político-sindical e eu estava abatido pela distância que havia entre nossas práticas – pileques homéricos (nesta época isso não me incomodava), armadilhas sexistas, trapaças burocráticas – e o que eu esperava, pessoalmente, ser o engajamento político. Depois deste questionamento que fiz comigo mesmo, o consumo da carne me pareceu ser uma de minhas incoerências e então, decidi renunciar.

Tornei-me vegetariano nas férias de Páscoa de 2001 (Sim! Sou novato!), mas a continuidade veio rápida.

Primeiramente, porque isso corresponde para mim a um período de reconsideração global, durante o qual me dei conta de que, sem renunciar à perspectiva de uma revolução concreta, era fundamental despender muita energia na luta contra o cotidiano, e de que mudar os seus próprios hábitos é, ao mesmo tempo, muito mais difícil e revolucionário do que distribuir folhetos que prometem um grande fim de dia mitológico (em geral, é muito interessante, e muito malvisto, exaltar as práticas reacionárias em meios que negam adotá-las: tempo e ordem de palavra segundo o sexo, luta retórica sobre o esquema de uma luta de tomada de poder...).

Em segundo lugar, porque foi nesse período, menos de um mês após ter me tornado vegetariano, que descobri a palavra e a definição do antiespecismo.

Eu fiquei imediatamente seduzido por esta teoria e penso que demorei a me tornar vegetariano porque eu tinha uma certa imagem dos defensores dos animais, que, assim como a Igreja ou o PS, eu detestava (o passado é facultativo), pois eles usavam os bons sentimentos das pessoas para conduzir-lhes a uma ideologia de piedade caritativa ao invés de incitar-lhes a uma verdadeira consideração do outro como aspirante legítimo à igualdade universal. Dentro deste contexto passei a denunciar os abatedouros e as redes de pesca, sem representar o papel de um samaritano que prega sermões às pessoas que saíram da boa estrada.

Ao me tornar vegetariano, tomei conhecimento, através de várias fontes, que tal ou tal produto que eu consumia possuía resíduos de carne (agradeço particularmente a Alias pela lista [*]) e resolvi então consumir apenas produtos que eu tinha certeza de que fossem 100% sem animais (posso até ter sido enganado uma ou duas vezes, mas eu não acredito na possibilidade) . E também parei com o queijo, a cerveja, o vinho (na hora certa: mais uma razão para boicotar o álcool) e outros produtos que eu pensava serem vegetarianos, mas não eram.

Por outro lado, com relação ao veganismo eu mantive um discurso relativamente moderado (ninguém abandona 18 anos de hábitos e de propaganda especista como uma troca de camisa).

Inicialmente e durante um curto tempo eu afirmei que a criação de animais não era um fato condenável em si, mas apenas certos tipos de criações (produtividade forçada, abate no fim da carreira...) e que, por conseguinte, aquele que aceita comer um ovo não causaria sofrimento a ninguém, mas quem mantém a galinha nos aviários é responsável por seu sofrimento. Eu não me estenderei mais sobre essa pseudovisão aristotélica da moral e da responsabilidade, pois é algo bem grotesco.

Em seguida eu adotei um ponto de vista mais materialista: talvez seja possível obter ovos sem causar sofrimento para as galinhas, mas por enquanto isso não é possível, então boicotamos. E isso é fiável, pois estou persuadido de que, em uma sociedade de super consumo e de super produção, assim como a nossa, não há correlação alguma entre as variações da demanda e as variações da oferta: não comer os animais ou o fruto de sua escravidão não os impede de serem mortos ou escravizados. É totalmente inútil perguntarmos até onde nossa obstinação pessoal pode conduzir.

Finalmente, o que me levou a me tornar vegano é a continuidade que estabeleci entre a luta anticapitalista e a luta anti-especista, com efeito: se não se trata mais de combater as formas de exploração do homem (condições e formas do trabalho), mas de combater a exploração em todos os sentidos - o trabalho, isso também engloba combater a exploração animal.

Repito que a obstinação pessoal é inútil e que, ainda que eu me imponha meu comportamento (é o meu lado absolutista e sectário), não será isso que extinguirá o sofrimento dos animais. Ao contrário, este não acabará enquanto a massa de indivíduos suficientemente consciente e dotada de ligações de força apropriada não levar o debate sobre a consideração social dos animais ao centro das preocupações políticas (em sentido amplo).

As práticas pessoais desses indivíduos são, ao contrário, totalmente secundárias, pois se trata de transformar nossa sociedade de modo que o conjunto de nossa produção seja despido de exploração animal (ainda em amplo sentido: humano + não-humano) e não de unir as pontas dos fios para tentarmos não estar, pessoalmente, implicados num horror do qual tentamos desesperadamente nos livrar.

 

Escrevi isto para destacar que, infelizmente, nossa luta se limita freqüentemente a tentarmos ir sempre além com relação ao que boicotamos e a convencer os outros a fazer como nós. Não tenho dúvidas de que aqueles que seguem este tipo de luta como um fim em si, sejam militantes sinceros, mas me parece somente que estamos cometendo um enorme erro no plano da estratégia, se visamos como objetivo a morte zero.

Claro, este objetivo parece de toda maneira inacessível e não tenho solução ao problema que levanto: notei que estamos num impasse do qual não afirmo conhecer a saída...

Mais que uma autobiografia resumida, creio ter exposto o caminho intelectual que me trouxe até aqui. Tenho consciência de ter emitido pontos de vista que estão longe de serem unanimemente compartilhados por outros ou mesmo majoritários dentro do movimento, mas trata-se da minha maneira de ver e compreender o anti-especismo e não de um texto que se faz de porta-voz do anti-especismo em geral.

Notes

[*Trata-se de um guia Viva Vegano. Pode ser encontrado no endereço: http://www.interdits.net/2001nov/ve....

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