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Cahiers antispécistes n°15-16 -

Então poderemos comê-los?

Tradução: Anna Cristina Reis Xavier; revisão: Marly Prestes

Eu não sou favorável à clonagem [1]. Lógico que se a técnica fosse usada apenas para produzir tecido fetal para salvar a vida de doentes, ela poderia representar algum interesse médico – ainda que saibamos que, no mundo atual, a técnica médica mais importante a ser executada é bem mais simples: uma alimentação em quantidade suficiente e cuidados fundamentais para todas as pessoas. Mas se a finalidade da clonagem é a de produzir uma criança, cópia genética de um genitor (a pessoa clonada), que corre o risco de ser criada tendo como «missão» vital de ser a sua cópia fiel, tal motivação me parece duvidosa, pouco favorável em si mesma para ocasionar a felicidade da criança em questão.

Seria uma infelicidade banal. Banais são as motivações duvidosas para fazer um filho – pode ser para se obter as «allocations familiales» (remuneração paga pelo governo francês para ajudar os casais a criarem os filhos N.T.), para se obter braços que trabalharão na lavoura, para assegurar sua segurança na velhice, para se auto-perpetuar ou para fortalecer uma união; freqüentemente a criança nem é desejada. Freqüentemente as condições nem são boas para o indivíduo que nascerá. Ninguém acha isso escandaloso. E talvez devêssemos achar; e não só com relação aos clones, mas com relação a todas as crianças que vão nascer.

Para o humanismo, a realidade vivida é um detalhe

Entretanto muitas pessoas ficaram escandalizadas com os projetos de clonagem humana anunciados pelo biólogo americano Richard Seed. O Conselho Europeu (19 países) redigiu com unanimidade e rapidez excepcionais um texto sobre sua proibição total. A clonagem humana é algo bem mais grave do que a Bósnia! E o que há de tão grave a ser desaprovado com relação à clonagem? O fato da criança resultante poder ser infeliz?

Disso falou-se pouco. Não, na verdade o que se desaprova na clonagem humana – e o que não se desaprova na clonagem de animais não humanos, já praticada – é que ela toca justamente o “humano”. Não toca o indivíduo preciso que está sendo gerado, mas a humanidade. Então, a «ONU deve tomar conta do problema da clonagem humana declarando-a como sendo “crime contra a humanidade”», nos diz o Professor J.-F. Mattei, membro do nosso comitê de consulta nacional de ética [2].

Censuram os anti-especistas, dizendo que estes “banalizam” ou “relativizam” os campos de morte nazistas ou qualquer outro grande massacre de humanos comparando-os com as criações de animais e com os abatedouros de animais não humanos. Nós comparamos massacres e massacres, horrores e horrores. O Professor Mattei coloca, no mesmo plano – o plano de «crime contra a humanidade» - o assassinato hitleriano de seis milhões de Judeus e a concepção, em condições tecnicamente particulares, de uma criança (seja ela no futuro feliz ou não). Quem está banalizando? Quem se importa com os sofrimentos reais, com o destino real dos indivíduos? Os humanistas ou os anti-especistas?

A obsessão genética humanista

Há uma simetria entre algumas pessoas desejarem ser clonadas e as motivações dos humanistas que os fazem gritar: a importância ontológica [3] que tanto os primeiros quanto os demais dão a nossos genes.

Quanto a este assunto, os humanistas possuem um discurso duplo. Por um lado, nos seres humanos, os genes são considerados como se não contassem. A Natureza, aos nos fazer humanos, apenas criaria uma página branca, sobre a qual tudo seria escrito a partir de nossas experiências (o educacional, o social). Esta tese foi e ainda continua em voga em vários círculos marxistas ou herdeiros do marxismo, que acreditam que tal tese é própria a eles, enquanto que na verdade ela foi sistematizada por Kant e date dos mitos da gênese e das interpretações religiosas que foram feitas dele: o ser humano teria recebido de Deus, ou da Natureza, uma liberdade total e não teria nenhuma determinação de ordem biológica. Este discurso tende a ser suplantado por outro, sob a pressão de conhecimentos científicos. Não podemos mais negar a influência de nossos genes. Façamo-los então, assim dizem os humanistas, os aliados de nossa causa. Trata-se de transpormos sobre o plano genético o discurso humanista sobre esta liberdade intrínseca de cada humano que faz a sua individualidade – oposta à “especeidade” dos não humanos, que apenas existem como representantes de sua espécie. Por causa da sexualidade, o genoma de cada humano é uma recombinação aleatória dos genes de seus parentes. Afirmemos alto e forte que, através deste concurso de circunstâncias, que faz de cada um de nós (esqueçamos os gêmeos univitelinos!) seres geneticamente únicos, a Natureza oferece e confirma nossa individualidade humana. Tal é o discurso feito tanto pelas campeãs dos humanistas modernos quanto pelo biólogo Albert Jacquard.

O discurso é bem fraco, e se mantém em pé pois todo mundo já está convencido da idéia da nobreza do «homem». Mas tem a desvantagem de fundar nossa «dignidade especificamente humana» sobre um caráter que, não podemos negar, apenas esquecer de mencionar, é banalmente partilhado por quase todos os outros animais e até pelas plantas. Por outro lado, ele tem a vantagem de se aliar, em silêncio, a nosso proto-racismo intuitivo, a esta obsessão quase universal que existe entre os humanos, de sua afiliação, de sua linhagem.

«Ele será forçado a ser feio»

Axel Kahn, outro biotecnólogo conhecido escreveu um livro contra a clonagem [4]. O semanário católico La Vie (A Vida) o entrevistou [5]:

Quais são as razões éticas que fazem o senhor condenar as experiências de clonagem em seres humanos?

Condeno-as pois representam um risco imenso para a humanidade, um ataque frontal contra um dos princípios de base dos direitos do homem: o direito à autonomia, o direito de não depender de quem quer que seja, a não ser do Criador para aquele que crê, e da natureza para os outros. Que a gente se ame ou se deteste, ninguém desejou que fôssemos de uma tal maneira pré-determinada

Que nossos pais vivam em um determinado país ou em um outro, escolham a língua que falaremos e a cultura que será a nossa; que nos coloquem em tal ou tal escola; que eles nos amem ou sejam pais indiferentes; que nos alimentem bem ou mal; tudo isso e as inumeráveis escolhas que nossos pais fazem quando ainda somos pequenos e que serão determinantes em nossas vidas, nossa estrutura emocional, nossos meios e nossa liberdade, não representam, para Axel Kahn, um insulto à nossa autonomia. Para ele, todos estes aspectos são acessórios. Por outro lado, nossos genes, são o essencial!

Este discurso enxerga a liberdade humana, base de nossa grande dignidade, na coincidência que determina nosso genoma. Curiosa «liberdade»! Pois se nossos pais não escolheram nosso genoma, nós também não. Encontramos aqui, na realidade, um enunciado explícito da concepção humanista da liberdade [6]: não a possibilidade, forçosamente relativa, de satisfazer nossas necessidades e nossos desejos, mas a submissão a uma ordem supra-humana. Rousseau dizia, do indivíduo que é forçado pela sociedade a aceitar suas regras, em nome da lei universal, «ele será forçado a ser livre».

Deus, Natureza, Fatalidade

A fatalidade, que, como pensa Axel Kahn, nos faz seres livres, não é, e sabemos disso, integral. Deus ou a Natureza se limitam a fazer uma triagem dos genes que já estão presentes em nossos pais. Mas para ele trata-se de um tipo de revalidação obrigatória a cada nova geração; cada novo ser humano deve «recuperar as forças», ser carimbado, por Deus ou pela Natureza.

Notaremos como nessa citação a Natureza aparece explicitamente como a tradução laica de Deus. Deus ou a Natureza, a estrutura do discurso continua sendo a mesma. A referência à natureza tem a vantagem de parecer mais de acordo com a racionalidade científica. «Você não vê Deus? Mas pelo menos você vê a natureza; você enxerga a mão dele, é uma fatalidade cuja existência você não pode negar». A fatalidade representa o papel de última dedução do pensamento deísta. Ela permite que se reintroduza Deus pelo buraco da janela: não parece um deus, é apenas a corrente de ar, apenas uma fatalidade, mas sabemos que é poderoso e cada um é livre para acreditar, no fundo de seu coração, que esta fatalidade é a mão de... de Deus?... digamos, se você prefere, da Natureza. De onde então ocorre uma deificação jamais explícita mas onipresente da fatalidade, desde os sorteios dos jogos esportivos e das eleições até os discursos dos bioéticos. A fatalidade sempre aparece como uma força legitimadora, à qual confiamos as decisões que não queremos nós mesmos tomar. Deus, Natureza, Fatalidade: três palavras para uma mesma coisa, nossa recusa de encararmos nossas responsabilidades.

Bife de clone

O clone seria, nestes discursos, uma simples cópia - e isso já está testemunhado no título do livro de Axel Kahn (Copies conformes). Na realidade, apenas geneticamente ele seria idêntico a seu genitor. Sua personalidade e até mesmo vários caracteres físicos, podem ser bem diferentes, segundo sua própria história. Eis aí uma evidência que muitos não enxergam. Mas sobretudo, essa “cópia” seria, cópia ou não, um indivíduo enquanto tal, bem real, vivo, vivendo sua própria vida; com seus projetos, seus sofrimentos e suas alegrias; enquanto que ao escutarmos nossos humanistas que se opõem à clonagem, temos a impressão que o clone seria «apenas uma» cópia, se tornaria um fantasma, se perderia no nada.

Pois o indivíduo em questão teria nascido mal. Teria todos os órgãos nos devidos lugares, um genoma – assim como o de seu genitor -, a cabeça no lugar certo, pensamentos e emoções, mas teria nascido mal. Teria sido mal concebido, para sermos mais exatos, faltar-lhe-ia o visto do Criador ou da Natureza.

«Um homem que é a cópia de um homem não é mais um homem», nos diz ainda o Professor J.-F. Mattei. Mas então o que seria? Uma mulher? Não, ele quer dizer que um homem que é a cópia de um homem «não é mais um ser humanox. Então é uma vaca? Um frango? E que gosto ele teria?

Notes

[1A clonagem é uma técnica que permite produzir um novo indivíduo que possui os mesmos genes (ou quase os mesmos) do que um outro indivíduo já existente, enquanto que na reprodução habitual, sexuada, os genes da criança são a mistura de uma metade aleatória dos genes de cada um dos pais.

[2Citado no Le Progrès, 13 de janeiro de 1998.

[3Ontológico: relativo ao ser, à sua natureza, à sua essência. Se você não compreende realmente o sentido desta palavra, não tem muita importância, pois eu acho que, na realidade, ela não significa nada.

[4Cópias exatas: Le clonage en question (A clonagem em questão), éd. NiL, 1998.

[5La Vie, 5 de fevereiro de 1998.

[6Ver sobre este assunto, Une Liberté qui subjugue (Uma liberdade que subjulga) de Yves Bonnardel, 1994.

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