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Cahiers antispécistes n°15-16 -

Quem vai ao vento não perde o assento

Traduzido por Anna Cristina Reis Xavier; revisado por Vegan Staff.

Em nosso imaginário a predação representa um papel importante. Tema de numerosos preconceitos, ela está carregada de significados tão potentes quanto emocionais que são dificilmente abalados.

Para contradizer os argumentos que nos são colocados e que fazem referência à predação, mas também para compreender melhor como funciona o naturalismo, é importante detalharmos, de um lado, como nossa sociedade encara a predação, o que ela significa quais mitos são representados, e, por outro lado, o que ela legitima.

Os humanos sentem respeito, admiração e uma grande fascinação pelos predadores. Vimos nos últimos meses, na revista Paris Match, um artigo «Les animaux, nous les aimons, protégeons-les» («Os animais, nós os amamos, vamos protegê-los») – um artigo sobre os animais. Onze espécies foram estudadas, dentre elas, 9 de predadores (leão, lobo, urso, águia, crocodilo...). Um outro exemplo é a publicação recente de uma revista chamada Prédateurs: l’encyclopédie des grands chasseurs du monde animal (“Predadores: a enciclopédia dos grandes caçadores do mundo animal”) – cada número é dedicado a um predador diferente (tubarão, lobo, leão...) e acompanhado com uma fita vídeo. O assunto vende bem. Como se trata de produtos comerciais, tais edições mostram a predação sob o ângulo que o público espera encontrar, apenas apresentando os estereótipos e banalidades que o leitor deseja ver. Utilizarei várias citações tiradas desse tipo de publicação para ilustrar minha análise.

O teatro da predação

Como são então apresentados os predadores, a predação, as presas, qual função lhes é atribuída e que interesse isso representa para nós, humanos?

Predadores, policiais e faxineiros

Mesmo se beneficiam de uma bela imagem no seio do «reino animal», de um lugar especial, os predadores continuam sendo animais e são percebidos como imersos na Natureza, como não (ou pouco) individualizados, como possuidores de uma natureza da sua espécie que corresponde a um lugar (função) no seio da Totalidade, no seio de toda Natureza [1].

A revista Prédateurs é particularmente explícita: a verdadeira função do tubarão, por exemplo, como é explicada página por página é... de fazer reinar a Ordem na Natureza.

- Título: «L’arme suprême des océans» («A arma suprema dos oceanos»)

- Subtítulo: «Gendarme écologique» («Policial ecológico»)

- Introdução: «...e esta fisiologia perfeita totalmente destinada a predação! O tubarão é uma arma magnífica a serviço dos equilíbrios marinhos fundamentais.»

Efetivamente, os predadores são sistematicamente apresentados como concebidos para realizar uma missão: a conservação da Natureza. São ferramentas perfeitamente adaptadas à realização de sua tarefa: «máquina de guerra perfeitamente regulada», «perfeitamente programada», «matador perfeito», «predador impiedoso», «máquina para matar».

E assim sobre os lobos:

Seu olhar dourado analisa de maneira tão precisa quanto um computador...

E sobre os leopardos:

Poderíamos dizer que um engenheiro aprofundou seriamente seus estudos antes de colocar a máquina para funcionar...

Sobre as águias:

A águia é a mais implacável e a mais suntuosa máquina voadora concebida para a caça...

Ou ainda sobre os crocodilos:

Esta mecânica rústica e preguiçosa nunca mata por prazer...

O indivíduo predador perde assim toda vida própria, sua existência inteira possuiu uma finalidade:

... a natureza produziu um animal blindado, anfíbio, sofisticado e perigoso predador. Tudo neles é previsto para ser ofensivo, não importa a situação em que se encontrem.

A mística humanista-naturalista nos autoriza a «explorar a Natureza», com a condição de não perturbarmos a ordem: caso contrário, a Natureza poderia se vingar. Somos então responsáveis por este «equilíbrio», e devemos garantir que estes «policiais naturais» possam continuar cumprindo suas tarefas de manutenção da ordem, pois o farão necessariamente melhor que nós. Assim, as últimas páginas da revista Predateurs são sempre dedicadas a «examinarem a proteção destes animais».

As presas são lixo

Se os predadores são nobres e realizam uma missão da mais alta importância, as presas, por outro lado, são sistematicamente apresentadas como lixos contagiosos dos quais é necessário se livrar para que não se acumulem e degradem a superfície de nosso planeta:

Engolindo os cadáveres dos peixes, exterminando os doentes e os machucados, o tubarão contribui em larga escala para manter o equilíbrio do ecossistema.

Os leões e os carnívoros têm uma função reguladora natural. Eles limitam os efetivos de herbívoros que, se numerosos, provocam uma rápida desertificação. Esta limitação intervém sobre os excedentes e só é exercida sobre os animais menos rápidos, os menos ágeis, os menos atentos ou mais velhos. Este equilíbrio que liga a cobertura vegetal, os herbívoros e os carnívoros é muito frágil.

Mas, o lobo, ao atacar preferencialmente os animais fracos, doentes, jovens ou velhos, revitaliza, regula e trata das populações dos ruminantes, tal qual um verdadeiro «veterinário natural».

Porém os humanos não são presas

A ideologia do l’apartheid des espèces [2] nos diz que, enquanto os outros animais são vistos como parte integrante da Natureza, de um sistema totalitário, fechado, hermético, repetitivo («cíclico»), imóvel à nossa escala de tempo, regido pela «seleção natural» [3] (dentro da qual se encontra particularmente a predação), por outro lado, os humanos, são considerados pertencer à esfera do social, de um sistema aberto, dinâmico, linear (o progresso da civilização), regido pelo Direito e pela Justiça. Os dois sistemas, o social e o natural, devem continuar bem separados. Não se deve intervir na Natureza, que está fora do social. Não podemos julgá-la com nossas categorias humanas pois «Ela» é absolutamente diferente. «Ela» deve continuar sendo sua própria referência, infinitamente outra, secreta, incompreensível e fundamentalmente sábia. Assim como Deus.

Nesta mitologia, os humanos nasceram da natureza, saíram dela, mas guardaram algumas ligações com “Ela”: principalmente foi a Natureza que lhes forneceu os meios (intelectuais propriamente humanos) para que se libertassem d’“Ela” – assim como Deus, nas mitologias monoteístas, lhes tinha dado a liberdade de provarem do fruto do conhecimento. É sobretudo pela sexualidade e por suas outras necessidades fisiológicas, dentre as quais o modo de se alimentar, que os humanos, estão supostamente religados à Natureza: é assim que a sexualidade ou o consumo (de carne, principalmente), que são práticas sociais ligadas entre outras a simbolismos de dominação, são profundamente sentidas como práticas naturais, que nem saberíamos questionar. Os humanos se consideram fora da Natureza mas uma de suas ligações continua existindo... a predação: eles/elas são (quer dizer: querem ser) predadores, inclusive, pelo fato de sua superioridade, querem ser super predadores.

Quando são os humanos que são predados por outros animais, trata-se de um erro da Natureza: não é «função normal» da Humanidade a de servir de presa!

Assim, o número da revista Prédateurs dedicado aos tubarões nos tranqüiliza:

De vez em quando, seu zelo o conduz a atacar o homem. Entretanto ele não está programado para isto. Este predador supremo não seleciona o que abocanha.

Resumindo: seria por distração ou sob qualquer outro fator que lhe faça esquecer que não somos comestíveis («se ele for perturbado», «se ele se sentir ameaçado»...) que o tubarão, às vezes, agride os humanos.

Os comedores de homens, inclusive o grande tubarão branco, não estão, a priori, programados para atacarem os nadadores ou os mergulhadores. Os acidentes são provocados sobretudo pela atitude dos homens. Ou estes apresentam um comportamento que os tubarões julgam agressivo ou caçam, matando os peixes que sangram abundantemente, excitando os ardores dos tubarões.

Estes «acidentes» não são imputáveis à Natureza (pois digerir a carne de humanos não está previamente programado): são os próprios humanos que se expõem, negligenciando as tais «leis naturais».

Para os naturalistas e humanistas isso é lógico e normal. Normal, pois a verdadeira natureza (função) do tubarão é de fazer reinar a Ordem nesta Natureza, de suprimir os membros doentios, sendo que os seres humanos, não consideram se situar nesta mesma Ordem.

Os humanos e a predação animal

Assim sendo, os humanistas se indignam logicamente, quando impedimos um gato de comer um rato ou um leão de comer uma gazela, desde que procuremos uma alternativa para um animal «100% natural» que aterrorize, mate e depois coma um outro. Sua natureza é a de caçar e seria antinatural intervirmos contra isso. Faz parte da natureza do camundongo, do rato, do animal caçado, de ser comido, de ser uma presa. Se o forte tem força por causa da natureza, o fraco também é fraco porque esta é sua natureza.

nas eras quando a natureza nos ditava ainda suas leis, tudo era «ordem e beleza», mesmo matar para viver, mesmo estar doente, mesmo morrer [4].

As presas são raramente apresentadas como indivíduos. Quando isso acontece, é para melhor colocar em evidência o caráter ao mesmo tempo excessivamente cruel e intocável da predação: são as atividades interiores de um outro Reino, particularmente bárbaro, claro, mas ainda mais sagrado e dentro do qual não devemos intervir.

Se é excluído que intervenhamos, o humanismo ordinário nos convida a nos divertirmos com o espetáculo que a «Natureza» nos oferece:

Quando perseguido por um leopardo marinho, o pingüim sobe até a superfície com uma velocidade incrível antes de se projetar a 2 metros acima da água. É um espetáculo maravilhoso.

Em alguns instantes, o elefantinho, aterrorizado vai cair, mortalmente ferido pela leoa que está colada em suas costas. Desta vez, a fera mordeu o filhote cruelmente, na garganta e na boca, mas a vítima ainda respira pela tromba. Sua agonia será longa e dificilmente suportável para os fotógrafos.

É o balé da morte, com sua crueldade magnífica.

Somente podemos achar magnífico o espetáculo da morte e do sofrimento (alheios) se nos colocamos fora da situação. Ou nos encontrávamos incapazes de intervir, ou, como no caso citado, um tipo de imperativo religioso de «respeito» pela Natureza nos ordena que fiquemos passivos. A Ordem é uma ordem. A predação é o símbolo de que a Ordem reina perfeitamente, com uma dureza de ferro: «o Equilíbrio natural» tira sua existência do fato de não deixar que nenhuma compaixão a influencie a favor desta gazela que corre sem fôlego diante da fera. Além do mais, quanto mais injusta a Ordem, mais é considerada como sendo uma Ordem. As «coisas» são ordenadas, arrumadas, quando estão arranjadas em um nível de onde não devem ser retiradas. O sofrimento que é necessário semear para manter a ordem, para manter cada um em sua categoria (ou fazê-lo entrar em sua categoria), dá a medida da absoluta necessidade que esta ordem encarna [5]: É necessário que as coisas tenham um sentido, não é? Vendo um não humano se fazer predar, temos a impressão de assimilar a Natureza em ação, ou a chance rara de contemplar a Ordem natural cumprir sua obra. A Natureza é, para os humanistas contemporâneos, o que o Destino era aos olhos dos gregos antigos, e o espetáculo da predação não humana desperta em nós sentimentos similares aos que a tragédia antiga inspirava. A predação é o símbolo por excelência da ordem natural. Como é exaltante achar a Natureza tão organizada e ordenada, tão... equilibrada!

Este respeito pela Natureza/predação nos conduz a levarmos em conta apenas os interesses do mais fortes, e os da vítima são ignorados. Como vimos, os humanos se identificam quase sempre com o predador, e não com a presa. Recusar intervir significa que estamos do lado do predador. Sempre a funcionalidade (ou a utilidade para a totalidade – caso trate-se de uma Sociedade ou da Natureza) é colocada como sendo mais importante para impedir qualquer revolta contra o sofrimento: a ordem do Todo prima sobre o indivíduo sensível e seus interesses. O respeito pela Natureza é apenas uma manifestação particular do respeito – onipresente – (porque o mais forte) e do que existe (porque existente).

O respeito dos equilíbrios, das tradições e das hierarquias – independentemente do que elas implicam para os seres sensíveis que nelas estão inseridos – evoca bem as místicas da extrema-direita, as místicas da Ordem. As divisões políticas são freqüentemente mais falsas do que possamos imaginar, e afinidades profundas unem, sobre esse assunto, os pensamentos humanistas/naturalistas, sejam eles de direita, esquerda ou ecologistas.

Os outros predadores não são comidos

No teatro imaginário da predação, presas e predadores representam papéis. Natural e facilmente nós nos identificamos com os segundos, eles mesmos identificados por sua vez com os dominantes humanos da época feudal: «rei da selva», «imperador das neves», «senhor dos céus», «majestade dos mares»... os predadores são nobres, de uma nobreza da espécie, e possuem uma dignidade que suas presas não possuem (desqualificadas por serem fracas, pelo simples fato de serem vítimas). Fora os peixes, não comemos os outros predadores. Além disso, nós os distinguimos cuidadosamente dos carniceiros, como as hienas, que merecem apenas nosso desprezo. Em nenhuma civilização humana os animais encontrados mortos são comidos. Sem dúvida isso lembraria demais os carniceiros, estes animais que aproveitam sem mérito algum a morte dos outros. Por outro lado, como é gratificante identificarmo-nos com a força, a grandeza daqueles que matam, que presidem a morte [6]! O humano deseja ser predador e, a justo título, sabe respeitar seus semelhantes, seus rivais [7]: ele os mata (se possível em um combate truculento, «de modo leal», como fazemos com alguém que estimamos, que consideramos como um igual), mas ele não os come. Comer alguém, pelo menos em nossa civilização, é tratá-lo como um animal, como «carne sobre dois pés», é desvalorizá-lo ao extremo. Engolí-lo equivale a rebaixá-lo. A que categoria? À categoria do não humano mais desprezível, aquele que serve para virar carne, que apenas tem interesse como matéria bruta. Então, não há canibalismo, nem o consumo de predadores. Na maioria das civilizações, a carne dos indivíduos das espécies predadoras é reputada impura, ou muito dura, ou muito forte, ou não comestível... Se às vezes acontece que um predador seja comido, trata-se de um ritual destinado à apropriação de sua força.

A dominação legitimada pela predação

Se a predação é tão admirada e evocada, é porque ocupa um lugar capital em nosso imaginário. Designada como representante privilegiada da «Ordem natural», ela contribui para legitimar diferentes tipos de dominações ou de sistemas sociais desiguais, dentre os quais, em primeiro lugar, evidentemente, o especismo.

Eis alguns exemplos:

Predação e carne

... nem o mais apaixonado defensor dos animais, nem o vegan mais obstinado, nem o zoófilo mais convencido, pensaram exigir do leão ou do tigre que estes se tornem vegetarianos. Por que então desejar, com obstinação, isso do homem? Por que o vegan recusa para ele mesmo e seus iguais a carne do animal morto, enquanto alimenta com carne seu cão e seu gato?

...

Muitas pessoas reconhecem simplesmente, e sem digressões, a necessidade para o homem, de comer animais. Pois existem espécies herbívoras, carnívoras ou onívoras, dentre as quais está a espécie humana; tal é seu patrimônio genético, sua história e seu destino. Para as espécies carnívoras e onívoras, é normal, natural e inevitável de matarem-se entre si para subsistirem, como é legítimo , além disso, que nos defendamos uns dos outros. Tal afirmação apóia-se essencialmente na fatalidade biológica que faz do homem um comedor de carne [8]...

A predação serve então, em primeiro lugar, para legitimar a predação humana. Certo, mas não a consumação de humanos pois o canibalismo é certamente o ato que assusta e impressiona de forma profunda o humanismo: não há nada de mais degradante para nossa humanidade comum do que comer um outro ser humano!

Predação, dignidade humana e beefsteak

Visto a nobreza que confere-se à predação, não é surpreendente que a eminente dignidade que dizem ter sido conquistada pelo homem ao longo da evolução (ao longo do processo de “hominização”, como gostamos de dizer) tenha vindo em ultima instância… de seu comportamento de predador.

Tema presente também em F. Engels:

... Do mesmo modo que o costume de comer vegetais misturados à carne fez dos gatos e cães selvagens os servidores do homem, da mesma maneira, o costume de aliar a carne aos vegetais contribuiu essencialmente para dar ao homem em formação a força física e a independência (...) O homem se tornou homem devido ao regime carnívoro [9]...

E também em J. M. Bourre, nosso cientista pró-carne já citado:

No reino animal, a atividade da caça e da predação estando ligada a performances intelectuais superiores, podemos deduzir que o homem, após o chipanzé, ao longo da evolução, se tornou uma espécie superiormente inteligente pelo fato de ter se transformado em caçador, e que, comportamentalmente, ele se assemelha aos carnívoros em muitos pontos. (...) É totalmente evidente que, no mundo vivo atual, as espécies carnívoras são mais ‘inteligentes’ do que as herbívoras. Este chamado à finalidade carnívora da espécie humana é uma conseqüência, uma passagem obrigatória, uma necessidade, uma obrigação ardente, para perenizar o corpo, o cérebro e o espírito [10]!

Suponhamos que admitíssemos uma tal «obrigação ardente» (!) de sermos inteligentes, mas enxergo mal no que o fato de mastigar um salame possa representar uma tão grande ginástica mental! Mas se um cientista o diz...

Carne e dominação

Desta lógica cotidiana que declara que a humanidade/virilidade tenha se tornado dominante e digna de reinar ao se tornar predadora, induz-se logicamente a glorificação da carne como fator de dominação no seio da própria humanidade; pois os homens verdadeiros comem carne, enquanto os vegetarianos são legumes efeminados:

… os que comem carne sempre dominaram os que não comiam, pois a estes últimos faltava a «dinâmica agressividade mental». (...) Para Rodale, os carnívoros são os dominadores, assim como os lobos e as raposas, e os vegetarianos estariam submissos a eles, como os coelhos domesticados [11].

Até uma época recente, o consumo de carne era usado para simbolizar relações de poder:

Os chefes sempre tiveram uma alimentação diferenciada da dos escravos. Os que conquistam, que comandam e que combatem se alimentam sobretudo com carnes e bebidas fermentadas, enquanto que os pacíficos, os fracos, os passivos, se contentam com leite, legumes, frutos e cereais [12].

Atualmente tais alegações parecem um pouco forçadas: as relações sociais se transformaram e a expressão destes restos de ideologia feudal parece agora datada, exceto em alguns meios da extrema direita. Apesar disso, trata-se da formulação de um subtendido social que retorna com força, não somente vindo da extrema direita, mas também dos antifascistas satisfeitos desde que a alimentação carnívora é questionada: «Paz, amor, liberdade, legumes» diziam as pessoas para ridicularizarem os antiespecistas [13]. «Guerra, ódio, coerção, carne», por outro lado, define relativamente bem a realidade do patriarcalismo e, infelizmente não é tido como ridículo. Seria isso que os antifascistas viris desejam?

Com efeito, ainda em nossos dias a maior parte dos homens come carne, os mais pobres desejam comer ainda mais, para assim ficarem persuadidos de seu status social... nos dois casos, trata-se, de preferência, do consumo da carne vermelha, que possui um simbolismo forte de violência e de dominação [14].

À dominação geralmente é associada a volúpia do bom vivant; recusar comer carne, evoca penitência, a mortificação, a abstinência: os vegetarianos são quase sempre descritos como seres tristonhos, ascéticos, místicos (a abstinência), magricelas, nervosos, amorfos (legumes), femininos ou afeminados, passivos... eles não dominam a morte e se assemelham mais aos «lixos doentios» que são os animais caçados.

Efetivamente, os dominantes se apropriam dos símbolos de dominação: o consumo de carne, o uso de pele, de couro... Em nossas sociedades, é geralmente o homem, o «chefe da família» que corta a carne antes de servir a refeição...

Imaginamos sempre os grandes banquetes vitorianos, com o macho dominante celebrando o corte do rosbife, a mulher dominante servindo os legumes e a família enorme reunida ao redor de uma mesa sobre a qual tudo está em ordem [15].

Talvez tenha-se notado que ao longo deste artigo eu falei progressivamente mais do Homem do que do Humano: com efeito, este caráter predador da humanidade é, acima de tudo, encarnada pelos seres masculinos. Em todas as civilizações as mulheres são dissuadidas de praticar a caça, pelo menos nas caças onde o sangue seja derramado [16]. E bem freqüentemente, elas também são excluídas do consumo da carne [17].

Predação e sexismo

Desde o fim do Antigo Regime e do aparecimento do humanismo, a predação não serve mais aos potentes para legitimarem suas guerras nem aos grupos de bandidos para legitimarem seus roubos. Agora, as violências físicas entre os humanos parecem ser classificadas dentro do “natural”. Hoje em dia, a predação serve essencialmente de referência ideológica para nossa violência contra os não-humanos.

Mas é notável que as relações de predação humanos/animais sirvam ainda e sempre de quadro de referência consagrada para o relacionamento entre homens/mulheres; já notamos que, quando imaginamos o humano predador, pensamos em uma figura masculina. Para dizer a verdade, em nossa mitologia especista/sexista, as mulheres não são predadoras [18], bem ao contrário, elas são presas no seio das relações sociais do gênero. É muito comum, por exemplo, que cartazes de festas estudantis apresentem fotos de um lobo humanizado na Tex Avery, que lambe os beiços ao ver uma mocinha bonita; Georges Moustaqui cantava «os amigos de Georges caçam as moças nos parques». Um homem que paquera uma mulher, é um homem que caça, etc. Trata-se realmente de um clichê do nosso imaginário. E as agressões e o medo continuam sendo a realidade comum das mulheres...

Predação e liberalismo

Um outro uso ideológico que é feito da predação e da referência à «ordem das coisas» consiste a legitimar o capitalismo como transcrição na ordem do social da luta de «todos contra todos» que existiria no seio da Natureza. E ainda bem mais, como Nossa Mãe Natureza funciona através da predação e da morte – mas nos permite assim de existirmos – o capitalismo e, geralmente a vida em sociedade implica, infelizmente, que haja perdedores. Sem dúvida é necessário que compreendamos que nós somos os sobreviventes no seio destes sistemas impiedosos; devemos, para sobreviver, continuar sendo cúmplices e calar nosso desejo de solidariedade. Não há alternativa possível, pois trata-se do sistema em seu conjunto. Ele foi criado assim, acreditar o contrário seria puro idealismo (irrealismo) e levaria ao caos.

Felizmente, neste terrível quadro, uma luz: aqueles que sofrem e sucumbem ao longo do caminho não sofrem inutilmente, eles se sacrificam para que o Todo continue a caminhar, quer dizer, e em última análise, para nós. Finalmente, tanta miséria trabalha de maneira escondida (mas de modo perceptível para quem quer enxergar) para a realização de um Bem superior:

Ainda que exista uma variedade imensa de criaturas e que cada indivíduo pareça agir como para si próprio, e ter em vista seus objetivos pessoais; entretanto... todos juntos... conspiram, neste caso, para a força ou a comodidade, e para a beleza, a harmonia ou a perfeição do todo; e, contribuem, de uma certa maneira, em um certo grau, para a vantagem e a felicidade uns dos outros [19].

Este elogio da predação data de 1745 e é contemporâneo dos primeiros discursos ético-políticos de justificação do liberalismo: se deixarmos cada um vagar de acordo com sua vontade, disso resultará o melhor para a comunidade/totalidade, quer dizer, mais ou menos diretamente para cada um. É a «mão invisível» (Adam Smith: Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações) que regula espontaneamente as coisas levando em conta o melhor interesse de todos. Que se trate do elogio liberal do capitalismo e da economia de mercado, ou do discurso a gloria da «harmonia natural», em ambos os casos insiste-se massivamente nos benefícios do jogo dos interesses privados (individuais), concorrência econômica em um caso, predação no outro, e esquecemos facilmente alguns de seus inconvenientes.

Aparentemente, o discurso do liberalismo é construído de acordo com o mesmo modelo que o da predação. Nos dois casos coloca-se em evidência sobretudo o interesse do Todo, Natureza ou Sociedade, sem definir o que poderia ser este interesse.

Mas, ao examinarmos de forma mais atenta, creio que há uma diferença importante entre as duas afirmações: o discurso liberal é uma justificativa e se refere ao Bem Comum para legitimar a liberdade individual, que é essencial. Aos olhos do humanismo, os humanos são considerados como indivíduos e seres livres, não o esqueçamos. O discurso sobre a predação, por outro lado, não é uma justificativa (porque a Natureza não tem que se justificar) e visa, sobretudo, demonstrar que a individualidade dos animais é uma ilusão, que quando acreditamos que eles procuram um benefício pessoal, isso acontece para o maior benefício, que é o funcionamento do Todo. Ao contrário, os não-humanos analisados dentro da ideologia naturalista, seriam apenas peças não individualizadas e naturalmente determinadas para contribuir à harmonia do Todo.

O especismo, um colosso de argila?

No presente artigo, repeti temas que já tinham sido abordados antes. Entretanto, há ainda muito a ser dito. Isso me parece necessário, por causa da importância do tabu que deve ser quebrado. É necessário que nos seja mostrado a que ponto a visão que temos «espontaneamente» sobre a predação é, na verdade, uma percepção ideológica, e em que visão do mundo ela se integra e se impregna de sentido.

O «discurso sobre a Natureza» diz livremente sobre seres infinitamente desprezados o que ninguém ousaria expressar abertamente e em voz alta sobre os seres humanos – mas o que cada um pensa (com força) e em silêncio: a força da hierarquia, o respeito pelo mais poderoso, o desprezo pelos fracos e perdedores, a relação de submissão mística à «ordem das coisas» desigual... O modo como o humanismo representa «a Natureza» também desnuda a ideologia cômoda mas bem real de uma sociedade fundada sobre dominações (das quais recusa, com artifícios, admitir a existência).

O especismo, ou naturalismo humanista, é uma «ideologia total», no sentido em que coloniza praticamente todos os aspectos de nossa visão de mundo: toda nossa civilização é construída sobre o pedestal de nossa dominação sobre os outros animais.

Hoje em dia este pedestal está rachando e isso mostra que o colosso é feito de argila; somos cada vez mais numerosos a afirmar, como Théodore Monod, no dia 9 de abril de 1997, no programa La Marche du Siècle:

Sonho com o fim das guerras, e não apenas daquelas que os humanos travam entre si; sonho com o fim das guerras que os homens engajam contra os outros animais, e sonho também com o fim das guerras que os animais travam entre si.

Notes

[1Cf. meu artigo «L’Animal, l’Homme, la Nature, la Société... et moi dans tout ça?» no folheto Nous ne mangeons pas de viande pour ne pas tuer d’animaux, 1992. Cf. igualmente de minha autoria «De l’appropriation... à l’idée de Nature», Cahiers antispécistes n°11, décembre 1994.

[2Cf. Y. Bonnardel, «L’Apartheid des espèces», Cahiers antispécistes n°14, décembre 1996.

[3Cf. D. Olivier, «La Nature ne choisit pas», Cahiers antispécistes n°14, décembre 1996.

[4A. Lindbergh, Lorsque les singes hurleurs se tairont, Presses de la Cité, 1976, p. 152.

[5Creio que os adeptos dos regimes autoritários não preferiam a repressão unicamente para fazerem reinar realmente a ordem (social), mas também para satisfazerem sua busca mística da Ordem: para melhor fazê-la reinar simbolicamente.

[6David Olivier, «Le goût et le meurtre», CA n°9, janvier 1994.

[7ARAP (Amis des Renards et Autres Puants) é uma associação especializada de proteção dos pequenos predadores, que simula a sociedade unindo os humanos aos «outros» predadores. Os caçadores utilizam o mesmo esquema, mas para defender o direito de caçarem. Os dois grupos fizeram campanhas de adesivos muito parecidas: uma raposa diz: «Não atire, eu sou um caçador como você» (ARAP), uma outra raposa afirma «A caça é algo natural!» (Chasse-Nature-Environnement). Caçadores e ecologistas comungam da mesma crença da existência de uma ordem natural, da qual a predação seria a peça principal.

[8Jean-Marie Bourre (Diretor de pesquisa do INSERM e especialista em neuro-biologia e em propaganda para a carne), De l’animal à l’assiette, éd. Odile Jacob, avril 1993, p. 233. Como nesta citação, suas frases não significam muita coisa por si próprias, e seus comentários valem o quanto pesam em termos de besteiras especistas.

[9Friedrich Engels, «O papel do trabalho na transformação do macaco em homem» (1876), in Dialectique de la nature citado em «Carnivorisme, hygiénisme et être humain» (pequeno texto místico naturalista traduzido em francês por F. Bochet) de Flaviano Pizzi, in Emergenza n°1, avril-août 1980.

[10J. M. Bourre, op. cit., pp. 240-241; sua primeira frase é a repetição idêntica de uma frase de Chapouthier (membro da Liga Francesa pelos Direitos dos Animais, promotor da Declaração Universal dos Direitos do Animal) em Au bon vouloir de l’homme, l’animal, Denoël, 1990, p. 153. Bourre em seguida explicita de forma desajeitada o que Chapouthier tinha preferido deixar implícito...

[11J. I. Rodale, System for mental power and natural health, USA, 1967, citado em «Carnivorisme...», op. cit. Rodale ele também sustentava a tese que os carnívoros são mais inteligentes... Ora, para o humanismo, a inteligência é signo de superioridade ontológica.

[12Alexis Carrel, L’Homme, cet inconnu, éd. Plon, 1935; citado por Coeurde Richard, «Voyage en Lepénie», revue Silence, n. 158, octobre 1992.

[13«Nós não comemos antiespecistas para não matar animais», Réflex n°40, oct. 1993.

[14Cf. mon «La consommation de viande en France: contradictions actuelles», Cahiers antispécistes n.13, décembre 1995.

[15Peter Farb e Georges Armelagos, Anthropologie des pratiques alimentaires, Denoël, 1985, p. 235. O narrador encontra aqui espontaneamente referências implícitas à predação através de um vocabulário geralmente usado para os não-humanos «macho dominante» é a biologização/etologização do «chefe de família».

[16Alain Testart, «Essai sur les fondements de la division sexuelle du travail chez les chasseurs cueilleurs», Cahiers de l’Homme, éd. de l’EHESS, Paris, 1986, p. 89.

[17A tese da origem do poder masculino a partir do controle do alimento de origem animal foi exposta por Friedl Ernestine, «Society and Sex Roles» («Sociedade e papéis sexuais»), em Human Nature, vol. 1, n°4, 1978; citado por Farb et Armelagos, op. cit.

[18Lembremo-nos, por exemplo, do sentimento de estranheza que sentimos quando tomamos conhecimento que são as leoas que caçam e não os leões. Mas tudo entrou na ordem (natural) de nossos pressupostos sexistas quando ficamos sabendo que os leões comem antes. As fêmeas devem esperar, juntamente com os filhotes, até que o macho esteja satisfeito. Ainda que não cacem, continuam sendo os dominantes.

[19Citado por Keith Thomas, Dans le jardin de la nature, La Mutation des sensibilités en Angleterre à l’époque moderne (1500-1800), éd. Gallimard, 1985.

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