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Cahiers antispécistes n°17 -

Por um radicalismo realista

Tradução : Anna Cristina Reis Xavier; revisão : Marly Prestes

O livro de Florence Burgat, Animal mon Prochain (Animal, meu próximo) da editora Odile Jacob, publicado em fevereiro de 1997, suscitou um longo debate dentro dos Cahiers. Decidimos finalmente apresentar aqui três comentários de Yves Bonnardel (p. 7) de Estiva Reus (p. 21) e de David Olivier (abaixo).

A redação

Eu teria muito, realmente muito a dizer sobre o excelente livro de Florence Burgat; mas eu não tive bastante tempo para reunir todas minhas reflexões aqui. Creio, entretanto, ter conseguido expressar abaixo pelo menos um ponto do meu desacordo com o artigo redigido por Yves Bonnardel [1] sobre este tema. Eu poderia criticar algumas frases do Yves; mas poucas dentre elas, pois na verdade estou de acordo com a maior parte de seus argumentos. Yves critica Florence por seu humanismo – e ele tem razão. É com outra coisa que eu não estou de acordo e esta outra coisa apareceu de modo mais claro após as seguintes reflexões que comecei a escrever e que não tinham nada a ver, no início, com o livro de Florence.

D.O.

O ataque iniciado nos Cahiers contra o humanismo suscitou vários debates entre os anti-especistas pelo fato do humanismo ter cristalizado sobre si várias conotações positivas – de não violência, de abertura, de generosidade, de sensibilidade, de franqueza, de inteligência, de equilíbrio, de responsabilidade, para citarmos apenas algumas. Temo que o público acabe pensando que estamos jogando tudo fora. E estimo que este temor seja um temor fundado.

Então, não seria suficiente criticarmos o especismo? Que contribuição poderia ter a crítica do humanismo? Enfim, existem os anti-humanistas especistas. Não está na moda se auto-intitular anti-humanista – para chamar a atenção sobre uma versão pessoal do humanismo? E, assim, a palavra anti-humanista acaba sendo apenas um sinônimo para designar alguém «amargo».

O humanismo: 1984

«A guerra é a paz [2]»

O que eu chamo aqui de «humanismo» não é apenas o movimento que possui este nome e que nasceu no Renascimento; mas o conjunto destes elementos culturais e ideológicos, onipresentes em nossas sociedades, que constroem e veneram este objeto imaginário chamado «o Homem», pressuposto representar o que cada humano(a) é, e ao mesmo tempo deve se esforçar para ser [3].

A dificuldade já se encontra no fato de percebermos o humanismo. O martelamento ideológico é incessante, obsessivo, ao ponto de se tornar subliminar; como o barulho dos aviões para aqueles que moram nas imediações do aeroporto de Roissy. É preciso um esforço particular para constatar cada referência à superioridade do Homem, à sua dignidade particular, à sua beleza e à sua bondade sem igual. Escutem bem, caros amigos: «Direitos do homem!»; «tudo o que é humano nos interessa!»; «ele não é um cachorro!»; «dignidade humana!»; «todos os homens são iguais!»; «todos os homens têm um coração!»; «calor humano!»; «liberdade humana!»; «crime contra a humanidade!»; «crime bestial!»; «não coma como um porco!»; sem contar as referências indiretas, mais numerosas ainda – elogios à inteligência, ao fato de ser capaz de ultrapassar seus próprios limites de forma gratuita (esporte...), ou pelo fato de termos ficado em pé... que apenas são compreensíveis se analisados dentro do esquema mental humanista, reativado e consolidado continuamente.

O humanismo, de acordo com esta propaganda ideológica cotidiana, seria o contrário da barbárie; assim como a religião, e, particularmente o cristianismo, que seria o reino do altruísmo e do amor.

Entretanto, o curriculum vitae do humanismo é profundamente sangrento, assim como o da religião, e isso levando em conta apenas o sangue humano. Explicitamente, em nome do Homem, foram cometidos os massacres nazistas, estalinianos e dos Khmer-vermelhos. Os exemplos históricos são abundantes, mas seria de pouca utilidade citá-los aqui, por estarmos tão habituados a ver em cada massacre de humanos cometido em nome do Homem apenas um acidente sem ligação com o humanismo – assim como aconteceu com a Santa Inquisição, ou mais de dois milênios de anti-semitismo, acontecimentos sem ligação com nossa «religião de amor».

Mas trata-se tanto de história quanto de lógica. Vou ilustrá-lo através de duas afirmações humanistas freqüentes.

«O humanismo, é a igualdade»

Por sua própria estrutura, o humanismo é incompatível com a igualdade, inclusive entre seres humanos.

O que é o «Homem»? Fomos habituados a acreditar em duas coisas completamente contraditórias:

  • Todo membro da espécie humana é, de cara, plenamente e de modo igual, Homem.
  • Devemos nos esforçar para sermos iguais ao modelo «Homem», devemos ser o mais humano(a)s possível. Podemos então ser mais ou menos Homem.

Estas duas proposições estão simultaneamente onipresentes na propaganda ideológica humanista. Por exemplo, os fascistas, que não acreditam na igualdade humana, seriam monstros, «ratos» («a besta imunda»); resumindo, seriam sub-homens [4].

O doublepenser é a atitude de manter nas mentalidades duas crenças contraditórias, aceitando-as ao mesmo tempo [5].

Por um lado, para ser homem é suficiente de ser Homo sapiens; por outro lado, a filosofia ocidental incessantemente quis definir o tal homem através de tal ou tal característica efetiva, que podemos mais ou menos possuir: por sua alma imortal, por sua inteligência, por sua cultura, etc. Enfim, este conceito de Homem se opõe, explicitamente, ao Animal; e o que fazemos aos animais? Basta olharmos em nossos pratos. A maior ou menor grande humanidade de cada humano(a) é, assim, um desafio formidável; um desafio simbólico e, bem mais do que simbólico. De um lado, esta humanidade representa a principal linha estruturante, justificadora, de nossa hierarquia social. Ter sucesso na escola e na universidade é provar sua aptidão à inteligência e à cultura; seu humanismo, então. Por outro lado, desde a democracia ateniense até os campos de concentração hitlerianos, passando pelos campos de algodão dos Estados Unidos escravagistas, nada foi mais fácil do que justificar através da exaltação do Homem a exclusão de inúmeros Homo sapiens da esfera de igualdade; pior ainda, desde que exalta-se a humanidade, que fazemos dela um valor a ser alcançado, um valor que não nos é concedido de cara, e que é ao mesmo tempo uma fonte de direitos – para o humanismo, é a única fonte de direitos – a igualdade, inclusive entre os humanos(a)s, torna-se impensável.

«O humanismo, é a bondade»

Image«O abatedouro é a alegria»

Neste domingo de Páscoa o papa disse que devemos parar de derramar «o sangue do homem». Este singular – «o homem» - que o humanismo tanto aprecia é de fato bem singular: pois tanto no Kosovo quanto em Belgrado, é o sangue dos humano(a)s que é derramado [6].

E o que incomoda os humano(a)s em questão? O humano(a) cujo sangue é derramado; que tem fome; que tem medo; que perdeu seus familiares; que está cansado, doente, ferido, que tem frio, que não tem mais abrigo ou segurança ou perdeu suas referências, será que essa pessoa diz: «me incomoda que o Homem seja maltratado»? O papa e o humanismo em geral, nos conclamam para defendermos o Homem, nos levam a agir de acordo com uma motivação completamente estranha à das vítimas.

O humanismo nos impõe uma frieza absoluta com relação aos sofrimentos e as alegrias dos humanos. E não pode ser diferente, pois ou são os sofrimentos e a alegria que são importantes, e neste caso esses sentimentos são importantes tanto quando for um rato ou um humano que os sintam; ou então é a humanidade que importa, e neste caso, o sofrimento e a alegria têm, no máximo, um valor instrumental. A única solução seria a de declarar, como fez Descartes, que o sofrimento e a alegria não humanos simplesmente não existem; que os gritos dos não-humanos são apenas barulhos de relógio. Mas tal ponto de vista não é mais defendido por ninguém, pelo menos dessa forma extrema [7].

Hoje em dia a ortodoxia humanista não se refere a Descartes, mas a Kant. Segundo Kant, a ética se baseia em um único imperativo, do qual examinaremos uma das formulações [8]:

Aja de tal modo que tu trates a humanidade, em tua pessoa e na pessoa do outro, sempre como um fim, jamais como um meio.

«Tratar a humanidade como um fim» pode ter conseqüências variadas. Sabemos da oposição habitual, se não completamente constante, do humanismo à eutanásia (humana), incluído quando esta é pedida pelo doente para colocar fim a seus sofrimentos, advindos de uma doença incurável. Kant era categoricamente contra o suicídio. Por outro lado, ele não se opunha à pena de morte; ao contrário, pois a «humanidade» implica responsabilidade. No fim das contas, a ética Kantiana impõe apenas de modo contingente, quando ela impõe, de agir pelo bem do outro, ou de si próprio – ao menos se entendemos por «bem» alguma coisa que tenha ligação com a felicidade, com o deleite da vida. Com efeito, não há nenhuma razão particular para que o bem do indivíduo sensível coincida com o do «Homem» nele ou nela. Bem ao contrário: «a humanidade no homem» consiste principalmente no que o faz um «não animal»; e por que de fato os humanos(as) são animais, e que o bem real deles é um bem animal, podemos dizer que fundamentalmente a moral humanista consiste em matar o «animal em nós» - em nos matar.

Um ato realizado por pura compaixão é, segundo Kant, desprovido de valor moral; apenas o que importa é o frio respeito do imperativo categórico. Agir por compaixão, por sentimento, equivale, para ele, a agir por egoísmo, por submissão a nossas emoções animais. Por aí ele, e os humanistas em geral, não podem mais reivindicar nenhum tipo de bondade. Não é por coincidência que, em 1961, durante seu processo, Eichmann justificou a obediência às ordens hitlerianas citando a moral kantiana – ele lamentava os sofrimentos de suas vítimas mas evitou a fraqueza de levá-los em consideração...

 

Eu poderia multiplicar os exemplos das contradições brutais entre o que é o humanismo - tanto na teoria quanto na prática - e o que ele aspira ser. Eu me contentarei de citar brevemente dois outros exemplos:

- O humanismo lutaria contra a fome no mundo. O modelo humanista do Homem é, entretanto, fundamentalmente o do cidadão - do cidadão de um dado país, então. Em nível internacional, a «pessoa» que é tratada como indivíduo e ao qual são atribuídos direitos invioláveis é a nação e não o ser humano. Aí ainda, há «indivíduos» mais ou menos humanos – nações mais ou menos «desenvolvidas», o critério sendo a economia, a capacidade de dominar a matéria. Este aspecto das coisas esteja, talvez, hoje em dia, evoluindo; mas tenho o sentimento que o humanismo seja, pelo menos em parte, responsável pela miséria econômica à qual estão submetidos(as) uma grande parte dos humanos(as) do planeta.

- O humanismo garante respeitar a diversidade dos indivíduos. Entretanto, ao valorizar como essencial a afiliação à espécie humana, ele desvaloriza todo o resto, como sendo subsidiário. A atual fuga proeminente tecnológica não consegue mascarar o grande medo do humanismo desde o «fim das ideologias»: o tédio. Apenas o Homem existe, o resto é apenas decoração. A dissidência é tratada, não com tortura nos porões do Ministério do Amor, como no romance de Orwell, mas através da negação. Os humanistas se mostram particularmente incapazes de compreender ou de entender o discurso anti-especista como ele é, procurando, ao contrário, moldá-lo através de todos os meios, para colocá-lo dentro de esquemas mentais que lhe sejam mais próximos, como o naturalismo ou o fascismo.

 

O humanismo é, por definição, especista. Não me parece possível lutar contra o especismo sem atacar o humanismo. Entretanto é o que tenta a maioria das organizações de «liberação animal» através do mundo, que se auto-declaram anti-especistas, mas usam ao máximo os esquemas de pensamento humanista. Mas como poderíamos imaginar dar realmente, de forma prática, o mesmo peso dos interesses humanos aos interesses dos não humanos sem renunciarmos ao discurso obsessivo feito à glória do «homem»? Uma tal glória sem privilégios seria bem estranha! A crítica do humanismo me parece indispensável.

Ser anti-humanistas?

Uma coisa é denunciar o humanismo, como eu acabo de fazer; outra coisa é não ser humanista. O que não deve ser esquecido é que, os humanistas, não são apenas Kant e outros Luc Ferry. Os humanistas são todos(as) humanos(as), pelo menos em nossos países; os humanistas somos cada um(a) de nós.

A propaganda ideológica incessante à qual estamos submetidos(as) tem a função de levantar a bandeira humanista até nos menores meandros de nossa existência. O humanismo conseguiu, sobretudo, colocar seu carimbo em tudo o que nos parece desejável ou generoso de ser apropriado.

O truque consiste em associar sistematicamente a igualdade, a bondade, a felicidade e assim por diante a um raciocínio humanista. Não fazer mal ao outro – respeitar seus interesses de ser sensível, de animal, então – torna-se «respeitar sua dignidade humana». Ajudar uma pessoa que morre de frio no passeio torna-se «não deixá-lo morrer como um cachorro». Ajudar as pessoas de países longínquos torna-se «humanitário». Nosso horror pela carnificina nazista torna-se horror pelo fato de «tratar os homens como se fossem animais [9]». Gozar de nossas faculdades torna-se «desenvolver-se como ser humano». Nossa condição comum de seres que sofrem e que sentem alegria torna-se «todos os homens são iguais». E até defender os animais torna-se desejar «tratá-los humanamente».

Em todos os lugares, em nossas mentes e em nossas ruas o humanismo construiu seus templos. A gastronomia é um deles, ainda que o prazer de comer seja tudo, salvo uma exclusividade humana; mas cada refeição deve ser um hino à cultura, ao simbólico, etc. O mesmo para a escola, enquanto sua justificação seja o prazer e a necessidade de aprender que nós partilhamos com qualquer um filhote de gato. Outro templo do humanismo: a psicanálise, esta hidráulica de nossos desejos animais. E a medicina, cuja tarefa é a de lutar contra o sofrimento e a morte, que nada têm de particularmente humano. E a justiça, o regulamento pacífico de nossos diferendos – atividade que partilhamos com vários animais sociais, e, particularmente, com os outros grandes símios. E a filosofia, busca sobre a relação entre o objetivo e o subjetivo, mas que desesperadamente desejou limitar a subjetividade apenas aos seres humanos. E, claro, a antropologia, a etnologia e a sociologia, cujo credo mais constante é: o homem não é um animal.

O humanismo procede por repressão/sublimaçã o. O que não podemos suprimir, devemos transfigurar. Os homens não comem apenas para se alimentar, veja bem! Contrariamente aos animais, claro. A sexualidade humana é vista como «tendo um sentido», mas não nos outros animais. Nos humanos a sexualidade tem a honra de servir como trampolim para o Amor, enquanto que os animais fazem isso apenas para se reproduzirem (ou, no máximo, servem da sexualidade como uma técnica para «causarem agressividade no grupo»; ver o resumo pág 53). A finalidade é cada vez separar nossas atividades e motivações de seus equivalentes nos não humanos.

 

Eu disse que acredito que a crítica do humanismo é indispensável; mas ela também me parece potencialmente mobilizadora. Na realidade, o humanismo representa para o especismo um pouco do que o patriarcado representa para o sexismo: a tradução concreta, em todos nossos atos da vida cotidiana, do princípio abstrato discriminatório. O humanismo nos opõe ao Animal; mas nós somos animais! Efetivamente, o humanismo, em cada ato e em cada pensamento nos opõe a nós mesmos [10].

Mas o humanismo conseguiu aderir tão fortemente ao que é bom que tornou-se impossível colocá-lo diretamente no lixo sem não apenas parecer colocar também no lixo estes elementos bons que, fundamentalmente e praticamente são o contrário do humanismo, mas que ele impregnou como esponjas. Exemplo: passo todos os dias na frente de um açougue. Eu não quebro os vidros dele, eu não faço nada. Sou adepto da igualdade animal. Mas como é que eu reagiria se em vez de galinhas ou leitões, ali dentro eu visse pequenas crianças humanas mortas, enfiadas em ganchos, cortadas e sendo vendidas? Não é apenas o fato de legalmente eu nada poder fazer no caso das galinhas e dos leitões. Mas se eu quisesse reagir emocionalmente como se fossem humanos (as), eu me tornaria louco, ou então, em nome da igualdade animal, eu nivelaria minhas emoções por baixo. Eu não reagiria mais, ou bem fracamente, com relação aos sofrimentos dos humanos e das humanas. Os massacres do Kosovo, de Ruanda? E daí?...! Dois mil animais passam dentro das panelas na França por minuto. O Holocausto? E daí?... Uma gota no mar de sofrimentos impostos aos seres sensíveis deste século. O racismo? Uma das variantes do especismo. E assim por diante. Hoje em dia, todas nossas reações igualitárias foram construídas sobre o terreno humanista; eu não posso rejeitar de imediato o humanismo, ainda que eu saiba que ele é fundamentalmente incompatível com a igualdade, sem comprometer gravemente toda possibilidade de lutar pela igualdade, inclusive pela igualdade animal. Como lutar contra as carnificinas dos não humanos se nos opomos apenas mecanicamente às carnificinas humanas? Como conclamar as pessoas à generosidade se puxamos, com um golpe seco, o tapete em que ela sempre esteve assentada? E como construir sem generosidade um movimento político a favor dos mais desarmados das vítimas do humanismo?

O mesmo vale para a compaixão em geral. Muitos nos censuraram que os Cahiers se caracterizam pela sua frieza. Nós quisemos evitar o estilo lacrimoso, «caritativo», típico da defesa animal. A defesa animal adotou este estilo, pois é o único que o humanismo lhe autorizou: o terreno do acessório.Quando um ser humano é maltratado, não o defenderemos invocando a piedade; «piedade para as mulheres» não é o slogan preferido das feministas! A piedade é para o humanismo um termo pejorativo, apenas bom para os não e subumanos. Para uma humana, serão invocados seus «direitos», sua «dignidade». Mas ao atacarmos o humanismo sobre o único terreno que ele considera válido, o da razão, nós lhe damos também, de certo modo, razão. Um de meus desacordos com o artigo de Yves Bonnardel sobre o livro de Florence Burgat, Animal Mon Prochain [11], é que ele me parece reproduzir, em nome do repúdio ao humanismo, esta frieza mesmo que é a marca do humanismo. O humanismo que deseja separar radicalmente a ética das emoções; e que despreza, profundamente, a piedade e a compaixão. Do mesmo modo, por seu parti pris intelectual, os Cahiers prestam uma homenagem implícita constante a esta mesma inteligência que assinalaria, segundo o humanismo, a fronteira homem/animal [12]!

Parece-me impossível sair brutalmente do círculo vicioso humanista. O humanismo é nossa cultura, no bem e no mal. Sair do humanismo é reconstruir toda nossa cultura. E quem teria a absurda audácia de se crer capaz, sozinho(a) ou em um pequeno grupo, de reconstruir, de A a Z toda uma cultura ? É por isso que, desde o início, os Cahiers desejaram evitar se posicionar como a voz do anti-especismo. Durante muito tempo, fomos, em um certo sentido, a única voz claramente audível. Mas eu me alegro ao constatar o aparecimento de outras vozes anti-humanistas, seja no seio do movimento anti-especista explícito, ou no exterior; como a voz de Florence Burgat.

A principal crítica que poderíamos fazer à Florence Burgat é a sua condescendência com o humanismo. Mas tal condescendência é inevitável. Florence Burgat não é condescendente como nós [13]. Para sairmos do humanismo, nossa tarefa deve ser a de realizarmos um trabalho de separação; não se trata de rejeitarmos sistematicamente tudo o que traz a marca do humanismo – pois tudo, em nossas vidas, traz sua marca. Por mais humanista que ele seja, Animal Mon Prochain realiza um trabalho de separação em várias direções. Eu interpreto sua referência à piedade neste sentido.

Recuperar a compaixão

Uma leitura rápida de Florence Burgat pode trazer a impressão que ela rejeita a racionalidade, invocando a piedade para os animais, assim como pedimos a graça após termos perdido um processo. Inicialmente ela parece dar razão ou deixar a razão com os adversários da reflexão do comportamento ético com relação aos animais, propondo criticar não os raciocínios deles mas as razões que eles alegam:

Instrumento incisivo da classificação, eu pergunto se a razão não deveria ser o objeto de uma crítica já que ela funciona como uma força que funda um direito exclusivamente dirigido para o interesse da comunidade reduzida dos seres qualificados como racionais [14]?

Tal atitude nos choca, pois acreditamos ser simples mostrarmos, com argumentos pouco contestáveis, que esta razão na verdade não é uma; por exemplo, ao notarmos que fundar a ética sobre a razão não implica limitar sua amplitude aos seres racionais. Argumentos simples, sim, mas pouco eficazes, nós sabemos disso, frente à uma comunidade de filósofos humanistas acostumados( as), ainda mais quando eles e elas não confessam, com a idéia de uma essência humana incomensurável ao «animal». É então, ao contrário, essa ontologia humana que Florence Burgat ataca diretamente.

O humanismo isolou a piedade na esfera do acessório; Florence Burgat, ao contrário, a coloca na base de sua ética. E ela o faz, segundo me parece, sem rejeitar a razão. Neste ponto, assim como em vários outros, ela é insuficientemente explícita, inclusive até ambígua; mas o importante é a direção que ela indica.

Parece-me que esta direção aparece na seguinte passagem:

Ao transpor um conceito epistemológico do campo ético, poderíamos dizer, sobre a piedade, que ela é uma experiência crucial [15].

Esta transposição do campo epistemológico - da física, por exemplo, e geralmente do estudo do que é – no campo ético – ao estudo do que deve ser – parece abrir um fio condutor. Pois se a filosofia humanista fez tudo para separar radicalmente o racional do sensível no campo ético, ele não pôde fazê-lo no campo científico. Não que a articulação entre o sensível e o racional seja uma questão já resolvida hoje; mas ninguém negaria que toda nossa física se baseia, ao mesmo tempo, e sem contradições, na experiência – o sensível - e sobre o raciocínio.

Rejeitar um raciocínio não é rejeitar a razão. A física escolástica da Idade Média, aristotélica, também construiu sobre a base da razão; mas foi suficiente que Galileu deixasse cair da torre de Pisa dois objetos de peso para jogá-la por água abaixo [16]. Ao mesmo tempo, a experiência de Galileu foi, em um certo sentido, incomunicável. Os dois pesos chegam embaixo ao mesmo tempo : era necessário ver acontecer para acreditar, pelo menos em uma sociedade a priori hostil a tal resultado. Que a piedade seja incomunicável – «a piedade como experiência e não como idéia [17]» - nos faz pensar, através de um reflexo humanista, que ela se origina do ato da fé, do irracional. Mas não agimos assim quando se trata de nossa física moderna ! O humanismo nos desacostumou a enxergar na piedade o que ela é: a percepção do sofrimento alheio.

Fazendo de nós essências – «almas» - o humanismo proibiu toda comunicação real. Como é que as essências poderiam comunicar entre si? Nossa alma é como um diamante, eterno e inalterável. O humanismo nos isola no solipsismo.

[N.T.: Solipsismo, do latim "solu-, «só» +ipse, «mesmo» +-ismo".) é a crença filosófica de que, além de nós, só existem as nossas experiências. O solipsismo é a conseqüência extrema de se acreditar que o conhecimento deve estar fundado em estados de experiência interiores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma relação direta entre esses estados e o conhecimento objetivo de algo para além deles. O "solipsismo do momento presente" estende este ceticismo aos nossos próprios estados passados, de tal modo que tudo o que resta é o eu presente. Wikipedia].

Por outro lado,

[a] piedade retira o indivíduo de sua ipseidade, o desapropria do círculo de sua autonomia ao atenuar a distinção entre si e o outro [18].

A piedade nos faz perceber o sofrimento do outro da mesma forma como percebemos nosso próprio sofrimento. Ela se torna, ao mesmo tempo, uma motivação, do mesmo modo que nossas motivações pessoais. O que não quer dizer que ela seja a única motivação, que o raciocínio ético não possa ser feito no mesmo instante em que sentimos compaixão. A física também não se limita à experiência!Também não quer dizer que toda piedade seja boa, que ela esteja acima de toda crítica. Podemos sentir compaixão pelas montanhas ou pelos rios, como citou Yves [19]. A existência de falsas percepções da física não desqualifica a experiência física global. A compaixão e a alegria partilhadas estão na base da ética, assim como a experiência física está na base da física: sem elas, não saberíamos que não estamos cada um(a) sozinho(a); e a ética perderia todo propósito.

E, a menos que voltemos ao cartesianismo, não é possível declararmos falsa toda piedade pelos não-humanos. Conseqüentemente, a ética inclui tanto os não-humanos quanto os humanos(as).

O humanismo se apropriou da piedade, reduzindo-a ao mesmo tempo à sombra de si própria. O raciocínio de Florence Burgat nos restituiu a piedade. Aliás, não se trata de examinarmos quanto Florence Burgat é humanista; mas sim de não deixarmos nossos próprios preconceitos humanistas nos esconder a desestabilização radical que Florence realiza no coração da obra humanista.

Notes

[1«Perplexité...», pág. 7 deste número.

[2Slogan do Partido no romance 1984 de George Orwell (1948). Nos porões do Ministério do Amor são torturados e mortos os «criminosos do pensamento»; é o Ministério da Verdade que cuida de atribuir os fatos com uma ortodoxia sempre mutante; e assim por diante.

[3O humanismo neste sentido provém de antes do Renascimento; desconfio que foi o cristianismo que, desde seu início, exacerbou este culto ao Homem (identificado ao Cristo ?), e a escolástica que fez dele um sistema.

[4Mal acabei de escrever esta frase e recebi um e-mail de um antifascista anti-especista no qual ele qualifica os fascistas de «sapos degenerados». Boa reutilização da concepção hitleriana do mundo...

[51984, pág. 171 (edição Penguin Modern Classics). « O «doublepenser é central à [ideologia do Partido]».

[6Sobre a palavra homem, no masculino: eu a repito assim, pois é o conceito deles; de fato, o humanismo cita o «homem» com traços estranhamente masculinos. Aqui eu não desenvolverei este ponto importante.

[7Entretanto é muito forte a tentação de desclassificar as emoções e sensações não humanas. Vi tal pesquisador procurar distinguir a «simples» dor «animal» do sofrimento, que somente as humanas podem sentir. Por outro lado, nasci muito tarde para escutar as teorias escravagistas sobre a insensibilidade dos Negros(as)...

[8Kant, Fundamentos da metafísica dos costumes, segunda seção.

[9Esta transformação é sistemática. O termo «Holocausto» (Shoah) se refere através sua origem bíblica (Gênesis 22) à oposição homem/animal (Abraão se prepara para sacrificar seu filho para Deus; este o substitui in extremis por um carneiro).

[10Além dos exemplos citados, mencionemos a proibição do aborto que existe em quase todos os países do mundo, em nome do caráter humano, então sagrado, dos embriões, entretanto tão pouco sensíveis quanto uma pedra; e o desprezo pelos humanos que não possuem ou possuem pouca «inteligência humana».

[11«Perplexité...», pág. 7 deste número.

[12Não se trata de rejeitar a inteligência, na medida em que nós ou outros a tenha, e não se trata de rejeitar outras particularidades freqüentemente humanas. Trata-se de recusar que ela seja um fim ou um valor em si. Ela não deveria atribuir nenhuma glória, e apenas ser vista como um instrumento para se aproveitar a vida.

[13A denúncia, fundada, de certos aspectos humanistas dos Cahiers foi, durante muito tempo a especialidade de Philippe Moulhérac. Seus textos podem ser obtidos no endereço: P. Moulhérac, Neyrolles, 43440 Champagnac. Enviar alguns trocados para despesas postais.

[14F. Burgat, Animal Mon Prochain, pág. 71.

[15F. Burgat, pág. 200.

[16Cerca de 1590. Para a física escolástica, um objeto mais pesado cai mais rápido. Não é verdade, ou pelo menos não é sensivelmente verdade, salvo para os objetos muito leves, que sofrem a resistência do ar.

[17F. Burgat, pág. 204.

[18F. Burgat, pág. 205.

[19«Perplexité...», pág. 18.

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